Cerrado
o elo sagrado das águas do Brasil
Diversas ameaças ambientais pairam sobre o Cerrado, bioma considerado o coração das águas. Explore gráficos, mapas, reportagens e depoimentos de cientistas, ambientalistas e nativos do bioma para entender por que as águas do Brasil estão por um fio.
Por meio da vazão de seus rios, o Cerrado bombeia vida para todas as regiões do Brasil, garantindo abastecimento, geração de energia, irrigação e ciclos de chuva. Ali nascem 8 das 12 regiões hidrográficas do país
Mas as águas do Cerrado estão em risco por causa do desmatamento e dos impactos das mudanças climáticas. Estudos apontam que o bioma pode perder um terço de suas águas até 2050
O Cerrado é a savana mais biodiversa do planeta e o segundo maior bioma do Brasil. Sua área original — mais de 2 milhões de quilômetros quadrados — ocupa aproximadamente um quarto do território nacional, abrangendo 12 estados e o Distrito Federal
Com uma legislação ambiental menos rigorosa do que a da Amazônia, o Cerrado tornou-se o principal palco da expansão do agronegócio exportador de commodities, que já ocupa quase metade de sua extensão — uma área superior à do estado do Mato Grosso (MapBiomas)
Marcado por altitudes elevadas, o relevo do Cerrado favorece o fluxo de rios e aquíferos que abastecem todo o país, inclusive as bacias Amazônica e do São Francisco
A vegetação, com raízes profundas, absorve água durante a seca e a armazena no subsolo quando chove, abastecendo aquíferos como Urucuia, Guarani e Bambuí
A Ambiental teve acesso a 50 anos de dados de vazão, chuva e evapotranspiração em seis bacias: Araguaia, Paraná, Parnaíba, São Francisco, Taquari e Tocantins.
Também analisamos 35 anos de dados sobre uso do solo. A perda hídrica chega a 1.303 m³/s – o equivalente a 31 piscinas olímpicas por minuto
O dado foi obtido ao compararmos a vazão mínima de segurança, chamada Q90, entre os períodos de 1970 a 1979 e de 2012 a 2021. Na hidrologia, o Q90 tem o papel de guiar a definição de limites para o uso sustentável de recursos hídricos (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)
As mudanças no uso e ocupação do solo são o principal fator de estresse para as águas do Cerrado. A área de vegetação nativa nas bacias analisadas encolheu em 22% entre 1985 e 2022. Já o desmatamento para o plantio de soja aumentou 19 vezes (MapBiomas)
A expansão da soja na bacia do São Francisco é alarmante: em 37 anos, a área plantada cresceu 71 vezes. No oeste da Bahia, 2,6 milhões de hectares foram convertidos em monoculturas — principalmente de soja, além de algodão, milho e sorgo —, em uma extensão quase equivalente ao estado de Alagoas
Pivôs centrais são utilizados para retirar águas superficiais e subterrâneas e irrigar os plantios
Entre as bacias analisadas, a do São Francisco é a que mais perdeu disponibilidade hídrica. A vazão mínima de segurança (Q90) caiu pela metade, de 823 m³/s para 414 m³/s. É como esvaziar dez piscinas olímpicas a cada minuto
Desde então, a soja irrigada avançou dez vezes. Em 2022, ocupava 107 mil hectares a mais que a vegetação nativa
A ocupação da bacia do Paraná vai muito além da produção de commodities. A região é marcada por extensas manchas urbanas e pela presença de hidrelétricas, como a gigante Itaipu
Como efeito, a disponibilidade hídrica está em queda. A vazão mínima de segurança (Q90) sofreu uma redução de 18% no período analisado. Os dados também indicam secas mais intensas desde 2014
Das bacias analisadas, a do Taquari foi a que mais sofreu com o desmatamento, com ocupação predominante pela pecuária. Em 37 anos, foram desmatados mais de 700 mil hectares, uma área superior à do Distrito Federal (MapBiomas). Em 2022, a vegetação nativa ocupava apenas um terço do território
Foi a bacia com maior alta na evapotranspiração potencial (12%), reflexo do aumento da radiação solar, que faz com que mais água seja retirada da superfície e levada à atmosfera. Um efeito da crise climática causada por ação humana
Mesmo com leve aumento de 14% na vazão mínima de segurança (Q90), houve uma redução significativa da disponibilidade hídrica nos últimos três anos. Além disso, o rio costumava ter picos de cheia com alguma frequência, mas agora sua dinâmica está mais uniforme
Esses impactos afetam o Pantanal, que depende do Taquari, e ajudam a explicar o avanço do fogo e da seca
Nas seis bacias analisadas, o avanço das commodities sobre a vegetação nativa impressiona, com aumento de 1.834% das áreas destinadas à soja. Na comparação entre os períodos de 1970 a 1979 e de 2012 a 2021, os dados mostram que o Cerrado tem perdido mais água para a atmosfera e que a chuva tem mudado de padrão e sofreu redução (21%)
Esses fatores diminuíram em 27% a vazão dos rios analisados. Uma ampla revisão dos modos de produção e consumo é urgente
A atual instabilidade política nos EUA tem potencial para ser um novo ponto de pressão, já que pode levar a um aumento da venda das commodities brasileiras para a China
Para piorar, a lei europeia de 2022 contra produtos ligados ao desmatamento excluiu Cerrado e Pantanal. Reconhecer a gravidade do desmatamento nesses biomas aumentaria a pressão sobre o agronegócio por soluções sustentáveis
Proteger o Cerrado depende de conhecê-lo. Sacrificá-lo é destruir nossas águas – e o nosso futuro. Sem Cerrado, não existe um futuro viável para o Brasil
O Cerrado tem perdido ao menos 30 piscinas olímpicas de água a cada minuto, de acordo com análise de dados inédita realizada pela Ambiental. Em 24 horas, o volume seria suficiente para abastecer o Brasil por três dias e meio. O levantamento leva em conta a porção predominante no bioma de seis grandes bacias.
Os dados evidenciam um cenário alarmante, já que nascem ali 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras. Águas que correm de norte a sul alimentando rios deslumbrantes como o Araguaia e o Paraná. O Cerrado é tão central para o abastecimento do país que muitos comparam o bioma a um coração, que bombeia vida para todos os cantos, garantindo abastecimento, geração de energia, irrigação e ciclos de chuvas.
As ameaças a essa água abundante, que talvez seja o maior patrimônio do país, vêm das adversidades do clima extremo e da radical mudança no uso do solo nas últimas décadas, sobretudo com o avanço do agronegócio exportador sobre o Planalto Central.
Apesar do perigo crescente, o bioma ainda ocupa um lugar secundário no debate público das políticas de preservação. Parece ser uma paisagem fantasma, quase invisível. Literalmente: a maior parte de suas características singulares se oculta sob o solo, em raízes profundas, sistemas de cavernas e aquíferos gigantescos. Não é diferente do ponto de vista cultural. Pontuado na superfície por campos largos de arbustos e matas, uma beleza de por vezes não imediata identificação, o Cerrado sempre foi um espaço natural pouco valorizado, até mesmo por parte da sua população urbana, que muitas vezes não experimentou vivências no bioma e, por isso, não tem conexão com ele.
E, sobretudo, falta o reconhecimento da população brasileira de que muitas de suas demandas cotidianas têm a ver com o Cerrado. “É comum encontrar pessoas indignadas com a escassez de água nas torneiras, ou agricultores temerosos de uma queda de safra diante da irregularidade do clima. Uma dona de casa ou um dono de restaurante se incomodam com a alta de preço dos alimentos. Todos esses públicos, no entanto, não associam essas questões problemáticas com o desmatamento do Cerrado”, diz Yuri Salmona, geógrafo e doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (Unb).
As águas por um fio
O projeto Cerrado – o Elo Sagrado das Águas do Brasil, desenvolvido pela Ambiental, fez uma análise inédita das vazões de importantes bacias hidrográficas do bioma desde a década de 70, com base em dados fornecidos pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). São elas: Araguaia, Paraná, Parnaíba, São Francisco, Taquari e Tocantins.
Na análise da vazão mínima de segurança (Q90), quando consideradas as seis bacias, a conclusão é que o Cerrado está deixando de pulsar 1.303 m³/s, comparando os períodos entre 1970 e 1979 e entre 2012 e 2021. Vale repetir: são 30 piscinas olímpicas a cada minuto. Este índice indica o volume mínimo de água que passa por um rio em 90% dos registros de vazão. O Q90 deveria ser levado em conta pelo poder público para tomar decisões como a concessão de outorgas.
Ao mesmo tempo, a demanda por água tem aumentado no bioma com a abertura de novas áreas irrigadas para o plantio de soja, entre outras commodities agrícolas. A análise levou em conta as diferentes formas de uso e ocupação do solo ao longo de 37 anos, com base nas informações do MapBiomas – rede colaborativa de co-criadores formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia, que mapeia a cobertura e uso da terra no Brasil. A vegetação nativa encolheu 22% nas seis bacias, enquanto a área destinada para a soja cresceu quase 20 vezes: de 620,7 mil em 1985 para 12 milhões de hectares em 2022. “O desmatamento é o grande fator que interfere na segurança hídrica nas últimas décadas”, resume Salmona, coordenador científico do projeto.
Se soma ao cenário ainda o impacto das mudanças climáticas, sentido claramente em todo o Cerrado pelo aumento generalizado da evapotranspiração potencial (ETp): a quantidade total de umidade que sobe do solo e da vegetação para a atmosfera. Ou seja, mais radiação solar está incidindo sobre o bioma e há uma aceleração da perda de água, dificultando a sobrevivência das plantas durante a estação seca.
Há ainda uma redução no volume de chuvas. A pluviosidade nas seis bacias analisadas diminuiu 21% quando levadas em conta as medianas dos dois períodos diferentes: de 1970 a 1979 e de 2012 a 2021. E mais: a precipitação mudou de padrão e chove num intervalo menor. “O período chuvoso tem sido reduzido em praticamente dois meses”, diz Salmona.
O que tudo isso significa? Uma diminuição no volume do precioso líquido que deveria seguir ao subsolo, alimentar aquíferos e lençóis freáticos e garantir ao Cerrado o papel de regulador hídrico. Com muita chuva concentrada num período pequeno, a água não tem tempo de infiltrar. O solo fica saturado e a chuva escorre superficialmente e com força, gerando enchentes e erosão. “Não precisa faltar chuva para haver um cenário de seca. Basta que a água venha na hora errada”, diz Salmona.
Ciclo inconsequente
A projeção de esgotamento das águas no Brasil já é avalizada por órgãos oficiais. No início de 2024, a Agência Nacional de Águas divulgou um estudo que, diante da redução da quantidade de chuvas e aumento da evapotranspiração provenientes das alterações no clima, vislumbra uma redução de até 40% na disponibilidade de água em 2040. É possível que importantes bacias hidrográficas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste atinjam níveis muito baixos. “Em um futuro próximo, a ANA e os órgãos gestores estaduais terão de agir para minimizar eventuais conflitos, especialmente entre os setores elétrico e agrícola, a fim de compatibilizar os diferentes usos e interesses da água”, diz Saulo Aires de Souza, coordenador de mudanças climáticas da agência.
Para entender o estágio de conservação das reservas hídricas do Cerrado, o geógrafo Yuri Salmona, entre outros autores, participou em 2022 de um estudo que concluiu que o Cerrado pode perder 34% de seu volume de água até 2050. Um terço de sua água! Um total de quase 24 mil metros cúbicos por segundo, equivalente à vazão de oito rios Nilo. De toda água já perdida, 56% se deu por conta do desmatamento e da mudança do solo e 44% pelas mudanças climáticas.
A expansão das plantações e das pastagens é responsável por 46% da emissão dos gases de efeito estufa no Brasil e acelera o que Salmona chama de um ciclo inconsequente: as irrigações e o desmatamento para produção de commodities agrícolas associados às mudanças climáticas geram cada vez mais secas intensas que, por sua vez, afetam as seguranças hídrica, energética, alimentar e também a própria produção agropecuária.
Sem o regime pluviométrico equilibrado, a cobertura vegetal fica mais suscetível ao fogo durante a estação seca, como atestam os incêndios devastadores do inverno de 2024. Para piorar, é nessa época que se intensifica o uso de irrigação para garantir a operação das áreas agrícolas.
As comunidades do Cerrado percebem que o ecossistema está sofrendo, com diminuição de áreas de cultivo de alimento e presença de espécies invasoras. Queimadas naturais provocadas por raios, por exemplo, acontecem no início da estação chuvosa, quando a umidade impede que o fogo seja danoso. Mas, com o clima mais seco, zonas que nunca queimavam, como as veredas – as “esponjinhas” do bioma, importantes para conservar água –, agora sofrem porque a umidade não é suficiente para conter as chamas provocadas por ações humanas. Os ecossistemas perdem seu tempo de regeneração. “Fogo e água estão conectados. Você precisa de água para ter biomassa para queimar”, diz a bióloga Mercedes Bustamante, professora titular da Universidade de Brasília (UnB). “A intensificação de incêndios afeta o manejo tradicional do solo praticado pelas comunidades locais.”
São dados alarmantes que comprometem o destino de uma paisagem cuja extensão original alcança 2 milhões de quilômetros quadrados – caberiam ali França, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Bélgica, Países Baixos e Eslovênia juntos. Cerca de 5% da biodiversidade global encontra abrigo nessa mescla de campos, savanas e matas, incluindo 11.627 espécies de plantas nativas.
O bioma é considerado a savana mais biodiversa do planeta. Metade do seu território, porém, não apresenta mais suas feições naturais – virou lavoura ou pasto. Cientistas e ambientalistas o classificaram como um hotspot de biodiversidade, ou seja, um ambiente de alta variedade e endemismo de espécies que sofre com a intensa degradação de seus hábitats.
Acima e abaixo da terra
O Cerrado se assenta majoritariamente sobre solos minerais antigos, grandes extensões de rochas calcárias que são esculpidas pelo vento e pela água. Estão ali, por isso, alguns dos maiores sistemas de cavernas do Brasil, caso do Parque Estadual de Terra Ronca, em Goiás, ou do Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu, em Minas Gerais. Esse tipo de solo mole induz a vegetação a ter raízes compridas, evoluídas para buscar água em regiões profundas na estação seca. Assim, a maior parte da biomassa do Cerrado está debaixo da terra – daí o apelido de “floresta invertida”.
Como o bioma ocupa em boa parte porções altas do Planalto Central, à medida que o relevo desce os lençóis freáticos se tornam mais próximos da superfície. Surgem os olhos d’água e as nascentes formadoras dos rios. O impacto da chuva é amortecido pela vegetação e escorre para as profundezas, onde acaba por ficar armazenada em aquíferos, como o Urucuia, Guarani e Bambuí. “Esse processo torna o bioma, de fato, uma caixa d’água. Que, como se fosse uma esponja, vai liberando aos poucos toda a umidade do solo para os rios”, diz Salmona.
O Cerrado é gerador de rios emblemáticos como o Xingu, o Tocantins-Araguaia, o Parnaíba, o São Francisco e os formadores do Pantanal. Paraguai e Argentina também usufruem da geração hídrica do bioma, de onde sai água para a bacia do rio Paraná, que abastece a usina hidrelétrica de Itaipu, a maior do continente.
De onde vem tanta água? Da relação entre o Cerrado e a Amazônia, em uma dinâmica de retroalimentação hídrica que conecta e sustenta os dois biomas. Parte dos rios que alimentam o bioma amazônico nasce ou tem uma grande contribuição de águas armazenadas no Planalto Central. Por sua vez, a intensa evapotranspiração da floresta tropical se transforma em chuva com a ajuda dos ventos equatoriais que descem margeando a Cordilheira dos Andes. Esses ciclos de produção de vapor d’água – os conhecidos “rios voadores” – abastecem o Cerrado e avançam depois rumo a outras áreas do país.
O desmatamento no Cerrado tem ampliado o bolsão de ar quente que impede esses “rios” de entrarem adequadamente no Planalto Central. Esta foi uma das causas das chuvas concentradas que causaram o desastre no Rio Grande do Sul. “A água não conhece fronteiras”, completa Mercedes Bustamante. “Mas muitas vezes a discussão das políticas ambientais no Brasil despreza essa conectividade do funcionamento dos biomas.”
Mosaico vegetal
Três tipos principais de vegetação nativa se alternam na cobertura de toda a extensão do Cerrado. Na formação florestal, há o cerrado, a mata seca, mata de galeria, entre outras. Já a formação campestre é dominada por gramíneas, e a savânica possui gradações de vegetação lenhosa, arbustiva e também de gramíneas.
De acordo com o MapBiomas, a savana é a formação que tem sido mais impactada por lavouras e pastagens. “Como as florestas estão prioritariamente ao longo dos rios, fica mais difícil desmatar. Já nas formações savânicas a topografia e o solo favorecem os empreendimentos agropecuários”, observa Ane Alencar, geógrafa e coordenadora do MapBiomas Cerrado e Fogo.
Apesar de o bioma ter leis ambientais específicas, elas são menos restritivas do que na Amazônia. De acordo com o Código Florestal brasileiro, no Cerrado dentro da Amazônia Legal – as regiões que estão em Mato Grosso e Tocantins, além de uma parte do Maranhão – a lei permite aos donos de terra desmatar até 65% da área de vegetação nativa; já fora desse território o número sobe para 80%. Nas áreas de floresta da Amazônia Legal, os proprietários podem desmatar no máximo 20% de suas propriedades.
As diferenças no código determinam variadas gestões do solo, “mas não se sustentam do ponto de vista biológico, da rara riqueza do Cerrado”, diz o biólogo Ricardo Bomfim Machado, professor do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília (UnB).
São nuances que exigem do governo encontrar novas formas de proteção, como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Bioma Cerrado (PPCerrado), que está em sua quarta fase. Para piorar, há o desmatamento ilegal e o conturbado processo de regularização da terra. “O Cerrado está sendo mais desmatado porque os empresários do agro estão vendo menor risco”, conclui Alencar.
Lobby pela fragilidade
Cerca de 11% da área original do Cerrado dispõe de algum tipo de proteção ambiental. Uma fração minúscula desse total (3,5%) é unidade de proteção integral, como os parques nacionais, fechados para a exploração dos recursos e abertos para visitação, pesquisa científica e educação ambiental. Apenas 15 dos 74 parques brasileiros estão integral ou parcialmente no Cerrado, entre eles os emblemáticos Chapada dos Veadeiros, Grande Sertão Veredas e das Emas. Todo o resto do território protegido do bioma divide-se em áreas de uso sustentável, caso das reservas extrativistas, ou em Áreas de Proteção Ambiental (APAs), um tipo de unidade de conservação (UC) que não assegura a proteção da biodiversidade porque objetiva mais fazer o zoneamento e regular o uso do solo.
Para o biólogo Bomfim Machado, a dificuldade em se criar unidades de conservação do Cerrado começa com o fato de o bioma ter se tornado o palco do agronegócio. Há imenso lobby político contra a demarcação de novas UCs. Para piorar, é grande o percentual de terras que já se tornaram privadas, diferentemente da Amazônia, que tem ainda muitas porções de terras públicas. Assim, criar uma reserva no Cerrado implica em maior gasto do Estado: desapropriar e pagar. “A melhor estratégia seria envolver os proprietários privados no processo de conservação, com a criação de reservas particulares de uso sustentável”, diz o biólogo. “O equilíbrio entre produção e conservação facilita negócios com os países importadores. Seria como um mercado verde.”
No que ele chama de Sul do Cerrado – uma linha imaginária do bioma abaixo da latitude de Brasília –, a realidade parece impedir grandes planos nessa direção. Muitos proprietários estão com déficit de proteção, ou seja, para atender ao Código Florestal, teriam que recuperar extensões de campos hoje estimadas entre 4 e 6 milhões de hectares. Mas o Norte do Cerrado, que abriga o maior percentual da área remanescente nativa, se oferece para “um novo modelo de ocupação que seja ambientalmente correto e socialmente justo”.
Relação utilitária
Mais homogêneas, as florestas tropicais que cobrem Amazônia ou Mata Atlântica permitem uma ideia de pertencimento mais clara entre os habitantes e o ambiente. Na Amazônia, as pessoas se reconhecem como amazônidas; governos estaduais se apresentam como amazônicos. Já no Cerrado isso não acontece, diz Bustamante, a ponto de “a própria identidade dos povos nativos ter se perdido. As pessoas não distinguem facilmente os indígenas locais”.
Qual a gênese dessa condição marginal? Para a pesquisadora, uma das respostas está na posição central do Cerrado no território brasileiro, como zona de convergência de biomas com características antagônicas. Já no aspecto cultural, acredita ela, a origem está na nossa herança europeia de valorizar sistemas florestais para exploração. “Somos brasileiros, e não brasilianos, né? Na semântica da palavra, brasileiro é quem explora o pau-brasil.”
A primeira commodity do Cerrado foram os minerais, uma atividade que deixou um legado de contaminação por mercúrio no interior de Minas Gerais. No século 19, a vegetação era considerada sem valor e passou a ser substituída pela pecuária extensiva, iniciada por soldados que voltaram da Guerra do Paraguai, a primeira grande frente de ocupação do interior do país. O Cerrado passou então a ser visto como uma vegetação feia, morada de gente rude e pouco desenvolvida. “Quando essa realidade mudou, foi para ser celeiro do mundo, com expansão da agricultura em larga escala. Uma identidade utilitarista”, analisa Bustamante.
A armadilha do agronegócio
As vastidões planas, a previsibilidade climática e a abundância de água fizeram do Cerrado o território ideal para a expansão do agronegócio em meados dos anos 1970, um projeto central do governo militar que envolveu a criação da própria Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O bioma tornou-se o laboratório a céu aberto de pesquisas avançadas que resultaram em adequações do solo e desenvolvimento de novas sementes. Algodão e milho são cultivados, mas a área agrícola cada vez mais é dominada pela soja. “Não estamos ocupando a terra para produzir comida. Ninguém come soja”, alerta Yuri Salmona.
Para piorar, o modelo se escora em desonerações antigas do governo federal. O agronegócio não paga o ICMS. A famigerada Lei Kandir diz que produtos minerais e agropecuários sem manufatura – ou seja, sem industrialização, como grão de soja ou com carne in natura – não pagam esse imposto. Assim, em vez de se transformar em óleo, ou algum produto manufaturado – capaz de tecnificar, gerar emprego e agregar valor ao negócio –, a maioria absoluta da soja brasileira vai ao exterior sem taxação.
Para o pesquisador, a tendência sistêmica de ampliação do estresse hídrico mudou a dinâmica de governança das águas. “Os controles regionais e nacionais das águas do Cerrado foram substituídos por atores que dominam a cadeia global de produtos agropecuários”, diz o especialista. Isso significa que a água dos rios e dos aquíferos, em vez de beneficiar as comunidades locais ou a população brasileira, está cada vez mais nas mãos de corporações do agronegócio.
O Brasil, continua Salmona, se encontra em uma armadilha: o discurso hegemônico defende o agronegócio como o pilar da economia, mas o país não exporta grãos e sim água. “Essa ‘água virtual’ dentro do grão, dentro da carne, é um bem cada vez mais escasso”, diz. A falta de rastreamento da produção é um agravante. “Se você comeu carne hoje, você não sabe de onde ela veio. Se comeu alguma coisa que usou soja, também não sabe da onde o grão veio”, continua.
Com o desmatamento do Cerrado, na visão do pesquisador, o Brasil apenas dá continuidade a um modelo econômico que se perpetua desde 1500. As commodities para exportação se sucedem: pau-brasil, ouro, borracha, café e, em décadas recentes, minério de ferro, petróleo, soja e carne. “Esse modelo não transformou o Brasil na Suíça, na Noruega. Não somos um país com IDH alto ou que dá o devido valor aos saberes dos nossos povos. Enquanto é tempo, nosso modelo de ocupação e produção tem que ser repensado para incorporar a capacidade produtiva no Cerrado de pé.”
Matopiba, o tiro de misericórdia
A questão da posse da terra no Brasil, controversa desde as capitanias e sesmarias da Coroa portuguesa, tem ganhado novos contornos. No Cerrado, milhões de hectares de terras públicas sem destinação da União – as chamadas terras devolutas – serviram ao longo dos tempos ao uso comum de comunidades tradicionais, que nelas cultivavam ou soltavam seus pequenos rebanhos de acordo com a estação.
Na região do Matopiba (acrônimo para os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), pequenos produtores sempre preferiram viver e plantar nas áreas de baixada, perto dos rios e córregos. As zonas de chapada, mais elevadas, eram usadas de maneira comunitária: sem “dono”, as vastidões serviam ao pastoreio sazonal do gado. “Só que essas áreas são o filé mignon do agronegócio: planas e mecanizáveis”, avalia o professor Ricardo Bomfim Machado, da UnB.
Com o avanço da fronteira agrícola, terras desse tipo tornaram-se alvo da chamada grilagem verde. Grandes produtores rurais, que desmataram além do limite legal em suas terras, se apossam dessas áreas comuns preservadas com o objetivo de legalizar uma reserva e assim poder obter créditos de financiamento, por exemplo. Como as áreas de reserva legal devem ser intocadas, os grileiros acabam por expulsar famílias que usufruem há séculos das terras – muitas vezes com uso de milícias rurais.
Os camponeses ficam em clara desvantagem na busca pela titulação da terra, diz Aryelle Almeida, advogada popular da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais. Segundo ela, como trata-se de um processo autodeclaratório, grupos poderosos usam recursos modernos como o georreferenciamento para identificar extensões rurais e chegam a forjar documentos. “Do outro lado, frágil, estão pessoas cujas famílias usam o território há quatro ou cinco gerações. Pessoas idosas, na casa dos 90 anos, que argumentam: ‘Meu avô nasceu aqui’”.
A grilagem verde alimenta a violência no campo “e deixa o Cerrado cada vez mais vulnerável”, diz Almeida, pois exclui do manejo da terra populações que sempre foram adaptadas às características do bioma e suas capacidades de produção sustentável.
“Quando o projeto Matopiba virou prioridade de governo para a expansão da fronteira agrícola, em 2014, fazendeiros e investidores do agronegócio encontraram terra barata e abundante. Simplesmente ocuparam”, diz Bomfim Machado.
O projeto foi implementado justamente nos estados que tinham a maior porcentagem de vegetação conservada. De acordo com a rede MapBiomas, 61% dos 1.829.597 hectares desmatados no Brasil em 2023 foram no Cerrado, um crescimento de quase 70% em relação a 2022. E três em cada quatro hectares perdidos do bioma foram no Matopiba. Quase todo o desmatamento (97%) teve como a causa a expansão da fronteira agrícola. “O Matopiba é o tiro de misericórdia no Cerrado brasileiro”, avalia Marcos Rogério, membro do Comitê de Bacia do rio Corrente e do Conselho Estadual de Recursos Hídricos.
Segundo a ANA, o bioma concentra hoje 80% dos pivôs centrais de irrigação do país, uma ameaça aos aquíferos. O desafio está em gerir a concessão de outorgas e fiscalizar o uso. “Os pivôs centrais são muito impactantes para a questão hídrica, porque eles estão bombeando água a todo momento e acho que é preciso ter uma governança melhor dessas outorgas de água”, avalia a geógrafa Ane Alencar, do MapBiomas.
Três rios da região do Matopiba rapidamente tornaram-se vulneráveis com a abertura das fazendas e o uso expansivo de pivôs: o Ondas e o Arrojado, na Bahia, e o Corda, no Maranhão. Projeções apontam que o rio Corda estará esgotado em 2047.
No oeste baiano, quando a extração ocorre nas áreas de recarga do Urucuia, mais superficiais e próximas de nascentes, afeta o ciclo hidrológico nas bacias dos rios Grande e Corrente, que contribuem para 30% da vazão média anual do rio São Francisco, chegando a até 90% em períodos de estiagem. “Essas bacias abastecem o grande sistema do São Francisco. A água vem das nascentes dessa região”, diz Andréa Leme, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) no Programa de Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema).
A expansão da agricultura irrigada e a supressão vegetal no oeste baiano coincidem com uma redução de 31 km³ no volume do aquífero Urucuia em duas décadas.
A água em disputa
Em Correntina, na Bahia, onde hoje 99% da água outorgada vai para as plantações, a falta de equilíbrio na divisão do recurso entre os grandes produtores rurais e a população local culminou num episódio que ficou conhecido como a Guerra da Água. Em 2017, um ano de estiagem e de El Niño, as comunidades de agricultores familiares e camponeses sofriam com a seca quando o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) liberou uma outorga para o megaprojeto de uma fazenda: a retirada diária de mais de 300 milhões de litros de água do rio Arrojado. A empresa já tinha licença para extrair um volume imenso no mesmo rio. Foi o estopim para a revolta. Em 2 de novembro, um grupo de agricultores familiares invadiu e destruiu as estruturas de irrigação da fazenda. A repercussão na imprensa nacional acendeu uma luz amarela para a questão da má distribuição dos recursos hídricos no Cerrado baiano.
O clima de tensão nunca cessou no município em que cada vez mais as outorgas se concentram nas águas subterrâneas. Cada um dos estimados 200 poços de Correntina chega a ter de 200 a 300 metros de profundidade, gerando em torno de 500 mil litros de água por hora – um total de 9 milhões de litros por dia. “Um único poço é capaz de abastecer a cidade por três dias. A população de 12 mil habitantes consome cerca de 3 milhões de litros de água por dia. Eis a diferença”, contesta o líder comunitário Marcos Rogério.
Na região, as comunidades praticavam uma agricultura familiar que dependia de zonas encharcadas, plantando arroz em solos turfosos onde brotam as palmeiras buritis. Entre as práticas dos camponeses estão as rodas d’água e os regos de irrigação, herança de migrantes fugindo da seca no sertão. “São comunidades de conhecimentos seculares e antigas relações com os rios, que vêm desde os povos indígenas”, aponta Marcos Rogério.
Outro exemplo de como modos de vida tradicionais têm sido afetados pela escassez hídrica está em uma paisagem literária do Cerrado, as veredas. A paisagem que norteou as andanças dos sertanejos e seus cavalos na obra-prima de Guimarães Rosa sofre diante do desmatamento, das queimadas e do esgotamento dos rios.
Na região do Alto Jequitinhonha, em Minas Gerais – o estado que mais produz eucalipto no país –, a escassez de água é uma realidade há décadas. Pequenos agricultores locais lembram de uma época de água farta mesmo na estação seca, uma fonte para a abundância extrativista. “A gente circulava lá na chapada e pegava jaca, pequi, gravatá, jatobá”, lembra José Carlos Xavier, morador da comunidade Campo Alegre. Os camponeses passaram a depender de cisternas e de caminhões-pipa e viram a diversidade alimentar minguar. “Com as plantações de eucalipto, as nascentes foram diminuindo, muitas secaram”, conta a agricultora familiar Salete Maciel, da comunidade rural Gentio, em Turmalina.
Estudos do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) relacionam a crise hídrica à substituição da vegetação nativa pela monocultura de eucalipto. “A vegetação nativa consegue aproveitar em torno de 50% de tudo aquilo que chove para abastecer as reservas de água no solo e os monocultivos de eucalipto só conseguem drenar cerca de 29%. Isso traz um déficit hídrico cumulativo”, afirma Vico Mendes Pereira Lima, engenheiro agrícola e professor do IFNMG.
Ainda assim, no primeiro semestre de 2024, o Congresso aprovou e o presidente Lula sancionou a Lei 14.876, que simplifica o processo de licenciamento ambiental para o plantio de pinus, eucalipto e mognos para fins comerciais, como a fabricação de carvão vegetal, celulose e madeira.
Como gerir a água?
Questão chave na elaboração de futuras políticas ambientais no Cerrado, a gestão das bacias hidrográficas brasileiras nasceu com bons conceitos. A Constituição de 1988 possibilitou a criação de um sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos, instituído em janeiro de 1997 com a lei 94.333, a Lei das Águas. “Em tese, a lei é bastante inovadora, ao apontar que a gestão do recurso deve envolver setores públicos, comunidades, sociedade civil e grandes usuários – aqueles que captam direto a água para o seu processo produtivo, caso da indústria, do agronegócio ou de uma empresa de saneamento”, comenta o biólogo Angelo Lima, Secretário Executivo do Observatório da Governança das Águas.
Descentralizado e participativo, o modelo levou à implementação dos chamados Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH). Dos atuais 243 comitês, 80 estão no Cerrado. Na teoria, o Plano de Bacia – elaborado pelos comitês depois de audiência pública, diagnóstico, prognóstico e propostas de ações – deveria definir a disponibilidade hídrica local. Com isso, a Agência Nacional de Águas ou o órgão gestor estadual teriam uma referência para conceder a outorga de uso. O problema é que, atualmente, nem todo comitê conta com um plano e, desta forma, surgem os conflitos. Setores com poder econômico e político conseguem outorgas maiores, ainda que a lei garanta que, em situações de escassez, o uso preponderante da água é para abastecimento. “Há um desafio do ponto de vista da representação social nos comitês”, diz Lima.
Para Yuri Salmona, é fundamental que o regramento para autorizações de irrigação de larga escala seja mais rigoroso. “A lei preconiza que as outorgas precisam garantir e privilegiar o acesso à água para o uso humano, e não para irrigação de commodities”, completa.
Na avaliação de Angelo Lima, outro ponto central para uma gestão eficaz das águas está na cobrança pelo uso, que não ocorre em todas as bacias. Potências agrícolas como Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul ainda não cobram. “Esse é o instrumento que pode garantir recursos para que o comitê elabore o plano e implemente as ações para recuperar a bacia.”
Caminhos para o Cerrado
O estudo publicado em 2023 pelo grupo de Salmona aponta prioridades para começar a reverter os cenários de destruição. A gestão da água é ponto fundamental. Ao mesmo tempo, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) deve se firmar como um instrumento de ordenamento territorial que consiga garantir que as reservas legais estejam dentro de uma microbacia e que sejam ampliadas em bacias criticamente ameaçadas. “A compensação dentro da microbacia garante que se tenha a área de recarga do sistema e o ciclo hidrológico não seja tão impactado”, diz o pesquisador.
Na visão da bióloga Mercedes Bustamante, o planejamento da conservação precisa ocorrer em escalas menores. “Só um gestor no âmbito do município pode fazer um desenho da autorização da supressão de vegetação que poupe as bacias hidrográficas mais impactadas”, diz.
Outros caminhos são o maior rigor nas autorizações para desmatamento legal, o estabelecimento de novas unidades de conservação e a implementação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo.
Também é preciso fomentar o desenvolvimento das cadeias produtivas locais, com desmatamento zero e uma lógica econômica mais sustentável, com uso de biotecnologia. Como criar novas oportunidades? Nos estados do Cerrado, incorporando na merenda escolar, por exemplo, o baru, o pequi, o araticum e tudo que pode vir da sociobiodiversidade do bioma.
“Não dá mais para pensar numa balança de exportação à base de soja”, alerta o agrônomo Rodrigo Lilla Manzione, professor da área de recursos hídricos da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Também teremos que mudar a forma como usamos a água e fazer adaptações em direção a uma agricultura com práticas conservacionistas de sistemas agroflorestais”, afirma.
E, além de tudo, não se pode criar uma estratégia de conservação da Amazônia que tenha como parte da solução o desmatamento do Cerrado. As leis de uso do solo têm que ser as mesmas.
A demanda é urgente. A destruição sistemática do Cerrado “é um ecocídio”, denuncia a deputada federal Célia Xakriabá, combativa representante dos povos indígenas da região no Congresso Nacional. Ela trabalha pela aprovação da PEC 504, que transforma o Cerrado e a Caatinga em patrimônios nacionais, um passo importante para uma nova mentalidade de conservação.
O desmatamento do Cerrado desestabiliza ainda mais o clima e rompe a normalidade do ciclo hidrológico. Por isso, ignorar a destruição do bioma, completa Salmona, é um gesto de ignorância e preconceito – social e ambiental. “Não podemos trocar água e biodiversidade por soja, capim e eucalipto.”
Mergulhe no Cerrado
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